GENÉRICOS E A PÓS-VERDADE
MEIAS VERDADES QUE CONSTROEM FALSAS REALIDADES
Considerando o conteúdo da longa matéria divulgada na noite deste domingo, 29/01, pelo programa “Fantástico”, da Rede Globo, que tratou da “qualidade dos medicamentos genéricos no Brasil”, alguns aspectos importantes exigem adequadas reflexões, especialmente quando as informações apresentadas à população parecem estar revestidas da verdade absoluta mas que na realidade, carecem de sustentação e tornam-se, portanto, em verdades parciais e tendenciosas.
Ao pretender realizar a comparação analítica entre os medicamentos de referência (os medicamentos de marca e geralmente os inovadores cujo registro tenha sido concedido pela Anvisa) e os genéricos disponíveis no mercado brasileiro, os estudos realizados não poderiam permanecer restritos aos testes de “equivalência farmacêutica” e perfil de dissolução dos medicamentos em análise, sendo que particularmente este último tem caráter apenas “indicativo” do comportamento da formulação farmacêutica no sistema biológico. Tal comportamento é essencial que guarde semelhança com o medicamento referência, o que se comprova, salvo algumas exceções, pelo estudo de biodisponibilidade comparativa entre o candidato a genérico e o referência, realizado em seres humanos voluntários e cujo delineamento seja capaz de possibilitar a análise estatística adequada e a comprovação ou não da bioequivalência entre os medicamentos em teste. Esta comprovação é a que permite a “intercambialidade” entre o medicamento referência pelo genérico correspondente, com asseguramento da eficácia terapêutica esperada. Tais estudos e os limites permitidos estão claramente definidos no conjunto de normas regulatório-sanitárias adotado pelo Brasil e são um dos norteadores para a concessão de registro de um medicamento genérico pela Anvisa. As normas brasileiras nesse campo estão em acordo com as normas internacionais. Entretanto, salvo a manifestação de um dos entrevistados, Prof. Dr. Odorico de Moraes (UFC), nenhuma menção a relevância sobre os estudos de bioequivalência foi objeto do enfoque da matéria. Ao contrário, o tema foi tido como menor e menos importante, resultando na impossibilidade de que a população tivesse, de fato, o entendimento adequado quanto a verdadeira relação das informações obtidas nos testes laboratoriais e a qualidade dos medicamentos genéricos analisados.
Da mesma forma, o resguardo do enfoque informativo e isento de uma matéria jornalística certamente deve sempre considerar que resultados analíticos podem ser comparáveis se assim o forem as metodologias empregadas para a obtenção dos dados, o que não ocorreu na matéria em tela. Isto é absolutamente relevante quando se julga como não estando em conformidade um medicamento cujos resultados analíticos foram obtidos por métodos distintos daqueles considerados adequados pela autoridade sanitária do país por ocasião da concessão do respectivo registro, uma vez que atenderam aos requisitos regulatórios vigentes e foram submetidos à análise técnica por parte dos servidores da Anvisa, incluindo, com certeza, as respectivas validações dos métodos aceitos para o registro do medicamento analisado. Mais uma vez não foi o que se observou na matéria divulgada em rede nacional.
Para além dos aspectos já referidos, cabe refletir sobre o contexto no qual se dá a divulgação de uma longa...mas incompleta matéria de pretensão jornalística que questiona a qualidade dos medicamentos genéricos no Brasil. Se por um lado as matérias jornalísticas, desde que isentas e corretas, constituem fonte de informação para o empoderamento da nação e para o exercício dos direitos da cidadania, por outro podem constituir instrumentos de indução para a formação distorcida de entendimentos, os quais podem prestar serviço aos mais distintos interesses. No caso presente, é interessante observar que o questionamento não comprovado da inadequação dos medicamentos genéricos testados se dá no mesmo mês em que passou a vigorar a emenda ao texto do Acordo Internacional sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual (Acordo TRIPS), provada por dois terços dos 164 países integrantes da Organização Mundial do Comércio, depois de cerca de 20 anos de debates e negociações diplomáticas. Segundo a alteração já em vigor, ficaram reforçadas as garantias para que os países cujo desenvolvimento tecnológico ainda seja limitado possam importar medicamentos genéricos para atender as suas populações, com a perspectiva de que haja redução da possibilidade de que as cargas sejam retidas em países intermediários com o argumento de que os medicamentos sejam considerados produtos falsificados e que descumprem os acordos internacionais sobre patentes. A emenda ao Acordo TRIPS possibilitará às pessoas mais vulneráveis do mundo o acesso a medicamentos para doenças como HIV/AIDS, tuberculose e malaria. O acordo temporário existente até 23/01/2017 permitia apenas que os governos de nações pobres e em desenvolvimento produzissem genéricos para seus mercados domésticos sem o consentimento dos proprietários das patentes mediante acordos conhecidos como "licenciamento compulsório". Entretanto, os países sem capacidade industrial ou densidade tecnológica compatíveis continuavam sem acesso aos medicamentos por não haver regulamentação para importá-los.
Nesse contexto, dadas as características tecnológicas e as capacidades instaladas do parque fabril farmacêutico do Brasil, não apenas poderemos ter incrementos importantes no arsenal de medicamentos genéricos à disposição no nosso mercado consumidor, o que poderá gerar reduções importantes dos preços dos medicamentos e ampliação da possibilidade de acesso da população, com impactos importantes nos gastos do Sistema Único de Saúde e nos gastos das famílias com medicamentos na rede privada. Outro resultado possível é a ampliação da possibilidade de fornecimento da produção nacional de medicamentos genéricos para atendimento de outros mercados internacionais, com destaque para aqueles países com limitações importantes no seu parque fabril e/ou no domínio das tecnologias necessárias. Portanto, desqualificar a qualidade dos medicamentos genéricos produzidos no Brasil pode, sim, colocar sob suspeita um parque fabril que tem se desenvolvido e qualificado ao longo das últimas décadas, com investimentos consistentes em ampliação da capacidade produtiva e adesão significativa aos regramentos regulatórios-sanitários aceitos internacionalmente, incluindo aí as chamadas Boas Práticas de fabricação.
Por outro lado, vale destacar que a divulgação de avaliações pouco precisas e incompletas findam por transmitir a percepção de que a Autoridade Regulatória brasileira, a Anvisa, padece de transparência nas suas decisões ou as toma de forma aleatória e sem embasamento técnico e formal adequados. Novamente aqui se pode perceber uma indução à deslegitimação da Anvisa como ente regulatório sanitário, o que certamente não serve aos interesses do povo e do sistema de saúde brasileiro. Se é certo e inquestionável que as decisões da Anvisa devem ser cada vez mais transparentes, que a sua direção deve estar desvinculadas dos interesses político-partidários que a tornam moeda de troca no jogo do poder instituído e que essa instituição deve estar sob controle social, também é certo afirmar que seu corpo técnico tem sido cada vez mais qualificado e aderido aos marcos regulatórios definidos para o país e não é do interesse da população que este instrumento de defesa dos seus direitos no campo da saúde perca legitimidade e poder de decisão. A perda de tal legitimidade certamente atenderá apenas aos interesses do mercado, nacional ou internacional, nos mais distintos campos que atualmente estão sob controle sanitário. Ao contrário da desregulamentação e da desresponsabilização tipicamente defendidas pelos governos neoliberais e pelos detentores do mercado, aos interesses da população interessa uma Anvisa capaz de agir, transparente nos seus atos, tecnicamente e socialmente embasada nas sua decisões e sob controle social! E nesse contexto, é bem verdade que há necessidade de discussão envolvendo os mais amplos setores organizados da sociedade, incluindo o Parlamento, os segmento produtivos e a Academia, sobre a necessidade de que a Farmacopéia Brasileira seja, de fato, independente e possa cumprir seu papel de Código Oficial do país, do qual devem derivar as decisões regulatórias sobre medicamentos e insumos farmacêuticos no Brasil, sem qualquer vinculação administrativa, de gestão ou de ordenamento formal com a Anvisa, uma vez que as decisões da Farmacopéia são pressupostos para as definições regulatórias nesse campo e, portanto, não podem estar sujeitas à decisão dos mesmo agentes. Esta discussão certamente deverá estar na agenda de todas as entidades e instituições que pensam o Brasil independente e qualificado.
Por fim, torna-se essencial que reflitamos sobre o fato de que meias verdades sobre as suspeitas apresentadas na pretensa matéria jornalística de ontem certamente interessam àqueles segmentos que se vêm ameaçados na sua hegemonia nesse campo econômico e para os quais a redução de custos, a ampliação do acesso das pessoas aos medicamentos e a regulação sanitária adequada e voltada às nossas necessidades vão no sentido contrário dos seus interesses de acumulação, os quais não mantêm qualquer vínculo com os direitos da cidadania ou com o desenvolvimento soberano e independente do Brasil.
Ronald Ferreira dos Santos
Presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos
Fonte: www.fenafar.org.br