A legitimidade da revista íntima supõe a superação de um conflito entre direitos fundamentais: de um lado, a liberdade individual titularizada pelo trabalhador e a proteção à sua intimidade; de outro, o direito de propriedade, titularizado pelo empregador.


O termo revista íntima, no contexto da relação trabalhista, caracteriza todo procedimento de exame minucioso realizado pelo empregador sobre o corpo ou os bens pessoais do empregado.
A prática parece ter uma fundamentação legítima: a preservação do patrimônio da empresa. Os tribunais trabalhistas têm legitimado a realização da prática de revista íntima, desde que conduzida com moderação. Nessas hipóteses, longe de caracterizar ato ilícito, a revista íntima de empregados caracterizaria exercício regular de direito: no caso, do empregador, consistente em promover a fiscalização da prestação dos serviços.


Em entrevista concedida ao sítio eletrônico do TST, o Ministro Barros Levenhagen, chamou a atenção para a necessidade de moderação na ocasião da revista do trabalhador, tendo observado que "a revista deverá ser feita nos pertences do empregado, sem que se proceda à revista íntima e sem contato corporal, mas apenas visual do vistoriador."[2]Todavia, reconhece o Ministro, "às vezes as empresas extrapolam nos limites da revista íntima, o que dá margem às várias condenações de indenizações por danos morais proferidas pela Justiça do Trabalho.
As soluções apresentadas pelo Poder Judiciário trabalhista, na busca de conciliar direitos e interesses que se contrapõem, têm, em geral, atribuído considerável discricionariedade ao julgador. Através do manejo de conceitos como "moderação", o Poder Judiciário tem tido à sua disposição uma margem de manobra bem generosa para aferir a legitimidade ou moderação dos meios de revista íntima. Como consequência, a preservação de direitos fundamentais de trabalhadores tem ficado à mercê de critérios nem sempre suficientemente claros, que atribuem considerável discricionariedade ao julgador.
A defesa dos direitos fundamentais consagrados na Lei Fundamental de 1988 exige, todavia, que se busque eliminar (ou pelo menos atenuar) a discricionariedade judicial na apreciação dos abusos cometidos sob o pretexto de preservar o patrimônio empresarial. É preciso que se ponha a questão dos direitos humanos do trabalhador em seu devido lugar.
A Constituição Federal de 1988, no inciso X do seu artigo 5°, torna invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando-lhes o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
A fundamentalidade de tais direitos é intuitiva.
A intimidade do indivíduo tem por fundamento jurídico imediato a sua liberdade individual, categoria de direitos anunciadas no contexto das revoluções liberais do século XVIII. As liberdades individuais (ou melhor, a positivação de direitos fundamentais) tinham (e ainda têm) um propósito político-filosófico bem demarcado: limitar o poder do Estado.
Todavia, a preservação da intimidade do sujeito não se limita a atribuir ao Estado uma abstenção (um não-fazer), no sentido de manter-se, a princípio, longe dos assuntos dedicados à vida privada. Também os particulares devem respeito às liberdades individuais de seus concidadãos, cabendo ao Estado velar pela sua preservação, garantir a justa reparação no caso de violação e inibir reiteração de abusos contra tais liberdades.

Tércio Sampaio Ferraz explica que o direito à intimidade se qualifica como "direito subjetivo fundamental, cujo titular é toda pessoa, física ou jurídica, brasileira ou estrangeira, residente ou em trânsito no país; cujo conteúdo é a faculdade de constranger os outros ao respeito e de resistir à violação do que lhe é próprio, isto é, das situações vitais que, por só a ele lhe dizerem respeito, deseja manter para si, ao abrigo de sua única e discricionária decisão; e cujo objeto é a integridade moral do titular.
Logo, é incontestável a afirmação de que a dignidade da pessoa humana exige que as relações de trabalho sejam conduzidas com o necessário respeito aos direitos da personalidade titularizados pelo trabalhador. Daí porque, a rigor, a tutela jurídica da intimidade do empregado tem fundamento jurídico imediato na tutela dos direitos da personalidade (reflexo do princípio da dignidade da pessoa humana).
Esta rápida digressão trabalhará, todavia, com outro fundamento, também vocacionado à preservação da intimidade do trabalhador nas relações de trabalho. Um fundamento liberal.
A prática da revista íntima atenta não só contra a necessária intimidade da pessoa humana, pois também caracteriza uma agressão à liberdade individual e à liberdade corporal do trabalhador, direitos fundamentais consagrados na Lei Fundamental de 1988.
Como lembra Murray N. Rothbard, "a agressão física ou o molestamento não precisam ser de fato 'danosos' ou infligir danos graves para que constituam um delito civil. Os tribunais têm considerado, acertadamente, que atos como cuspir no rosto de alguém ou derrubar seu chapéu são agressões consumadas. As palavras do Ministro Holt, de 1704, parecem ainda ter validade: 'O menor toque raivoso em alguém é uma agressão consumada.' Embora o dano possa não ser substancial na prática, em um sentido profundo podemos concluir que a vítima foi molestada, foi incomodada, pela agressão física contra ela, e que, assim, essas ações aparentemente menores tornaram-se infrações jurídicas."[5]
É bem verdade que a sistemática agressão à liberdade corporal e à intimidade dos empregados tem buscado fundamentado no poder diretivo do empregador, destinado à preservação do seu próprio patrimônio. Contudo, como lembra o supracitado economista norte-americano, "o axioma básico da teoria política libertária sustenta que toda pessoa goza de autopropriedade, tendo jurisdição absoluta sobre seu próprio corpo."[6] Logo, "isso significa que nunca é justo alguém invadir ou agredir outra pessoa.
A tutela do direito de propriedade do empregador deve observar (também) a preservação do direito de autopropriedade, titularizado pelo seu empregado. Tais interesses constituem liberdades individuais e gozam de igual relevância no sistema de direitos fundamentais.
Não é novidade que a legitimidade jurídica da prática da revista íntima supõe a superação de um conflito entre direitos fundamentais: de um lado, a liberdade individual titularizada pelo trabalhador e a proteção à sua intimidade (que decorrem do direito de autopropriedade e do princípio da dignidade da pessoa humana) , de outro, o direito de propriedade, titularizado pelo empregador. Como se sabe, as normas que veiculam direitos fundamentais podem assumir a veste de normas-regra ou normas-princípio.
Parte-se, aqui, do princípio de que as normas que veiculam o direito à propriedade privada e o direito à intimidade e à liberdade individual ostentam caracteres de normas-princípio, pois veiculam deveres prima facie, "cujo conteúdo definitivo somente é fixado após sopesamento com princípios colidentes. Princípios são, portanto, 'normas que obrigam que algo seja realizado na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas'; são, por conseguinte, mandamentos de otimização.
A admissão de que a norma jurídica é gênero, do qual são espécies a norma-regra e a norma-princípio conduz à adesão à teoria dos princípios, desenvolvida por Robert Alexy. Para o jurista alemão, o conflito entre princípios deve ser resolvido pela técnica do sopesamento, no caso concreto. Isso porque não é possível adiantar o resultado de um conflito entre princípios, em abstrato.
A ponderação, como técnica de solução de conflitos entre princípios, é operada pela regra da proporcionalidade, que supõe a realização dos exames de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (sub-regras da proporcionalidade).
A adequação é o primeiro dos exames a ser realizado para que se avalie a proporcionalidade da medida restritiva de direitos fundamentais. Por medida restritiva, no caso, temos a revista íntima/pessoal operada pelo empregador contra o obreiro. Como ensina Virgílio Afonso da Silva, uma medida restritiva de direitos fundamentais é adequada quando o seu emprego faz com que "o objetivo legítimo pretendido seja alcançado ou pelo menos fomentado.' Dessa forma, uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido.
A revista íntima é, de fato, uma medida adequada para se preservar o patrimônio da empresa, porque possibilita a identificação de eventuais subtrações e danos. Logo, o objetivo perseguido (preservar o direito de propriedade) é alcançado pela medida restritiva.
O exame da proporcionalidade, contudo, se encerra na aferição da sub-regra da necessidade. Conforme as lições de Virgílio Afonso da Silva, "um ato estatal que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido. Suponha-se que, para promover o objetivo O, o Estado adote a medida M1, que limita o direito fundamental D. Se houver uma medida M2 que, tanto quanto M1, seja adequada para promover com igual eficiência o objetivo O, mas limite o direito fundamental D em menor intensidade, então a medida M1, utilizada pelo Estado, não é necessária. A diferença entre o exame da necessidade e o da adequação é clara: o exame da necessidade é um exame imprescindivelmente comparativo, enquanto que o da adequação é um exame absoluto.
O que se deve perquirir é: a proteção ao patrimônio da empresa pode ser promovido, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido? Com efeito, o manejo de tecnologias de monitoramento, como a instalação de câmeras e o controle de estoque pelo empregador são medidas que realizam com a mesma ou maior intensidade a proteção do patrimônio patronal. Além de promover com a mesma ou maior intensidade, o controle de estoque e o monitoramento eletrônico restringem em menor medida o direito à intimidade e à liberdade individual do obreiro quanto comparadas à prática da revista íntima/pessoal.
Como lembra Gustavo Filipe Barbosa Garcia, "o entendimento mais adequado, em conformidade com os direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana, é aquele que veda a revista pessoal em toda e qualquer circunstância, pois o empregador pode, perfeitamente, valer-se de meios tecnológicos para a proteção de seus bens, bem como do patrimônio empresarial, contra eventuais condutas lesivas."[11]
A este respeito, oportuno transcrever precedente do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região, que agasalha a linha aqui defendida:

EMENTA: AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. DEFESA DE DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS, ESPÉCIE DE DIREITOS COLETIVOS LATO SENSU. CONFIGURAÇÃO. A adoção do procedimento de revista íntima, quando realizado sem observância aos limites constitucionais, afigura-se apto a desencadear múltiplas lesões a direito individual comum e, por conseguinte, a configurar ofensa a direito transindividual ou coletivo lato sensu, gênero dos direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos. Nesse sentido, entende-se que as circunstâncias fáticas para realização da revista íntima, objeto de apreciação na presente ação, une os titulares dos direitos pleiteados e evidencia a homogeneidade dos direitos defendidos, a ponto de viabilizar a tutela coletiva desses interesses pelo MPT. Partindo dessa premissa, não há como negar a legitimidade do Ministério Público do Trabalho para propor a presente Ação Civil Pública, por força do disposto no inciso III do art. 129 da CRFB, arts. 5º e 21 da Lei 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública) e incisos I e II do parágrafo único do art. 81 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). REVISTA EM BOLSAS E SACOLAS. PODER DE FISCALIZAÇÃO DO EMPREGADOR. POSSIBILIDADE. Em decorrência do poder diretivo do empregador, em que se inclui a sua prerrogativa de fiscalizar os seus subordinados, não lhe é defeso realizar revistas em bolsas e outros pertences dos empregados, mas desde que ocorram de modo genérico, sem imputação de gravame à honra e à dignidade dos trabalhadores. Recurso do réu a que se dá provimento parcial (TRT da 13ª Região, RO n. 00725.2011.006.13.00-6, julgamento em 06/07/2012. DJ 09/08/2012. Relatora Herminegilda Leite Machado).

No mesmo sentido:

"DANO MORAL. REVISTA ÍNTIMA E DE BOLSA DO EMPREGADO. VIOLAÇÃO AO DIREITO À INTIMIDADE. A revista de bolsa de empregado constitui-se em nítida violação ao direito à intimidade, constitucionalmente assegurado. Tal fato, somente, comporta exceção em hipótese de situação concreta capaz de caracterizar a prática de determinado ato ilícito por aquele cometido. No presente caso, indiscutível as constantes revistas desmotivadas da bolsa do empregado violaram a intimidade deste, gerando, assim, a obrigação da reclamada ao pagamento de indenização por dano moral. Mas não é só. A invasão desarrazoada da esfera particular do indivíduo, nesta compreendidos não apenas o seu corpo, mas também os seus pertences, é suficiente para configurar violação à intimidade do empregado, não sendo, pois, necessário despir o empregado (ou tocar sua genitália) para que tal violação ocorra. Não bastasse tudo isso, o empregador ainda expunha o reclamante ao vexame ao proceder às referidas revistas perante outros trabalhadores. Recurso ordinário do reclamante a que se dá provimento" (TRT da 19ª Região, proc. 00560-2004-001-19-00-9, publicação DOE/AL de 11-05-2006, Tribunal Pleno, Relator Juiz José Abílio).
Sublinhe-se, do mesmo modo, a orientação contida no Enunciado nº 15 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho promovida e realizada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), pela Anamatra, pela Enamat e apoiada pelo Conselho Nacional de Escolas de Magistratura do Trabalho (Conemat), verbis:

"15. REVISTA DE EMPREGADO.
I - REVISTA. ILICITUDE. Toda e qualquer revista, íntima ou não, promovida pelo empregador ou seus prepostos em seus empregados e/ou em seus pertences, é ilegal, por ofensa aos direitos fundamentais da dignidade e intimidade do trabalhador.
II - (...)"
Há, inclusive, projeto de lei tramitando no Congresso Nacional, cuja redação original proíbe as empresas privadas, os órgãos públicos da administração direta e indireta, as sociedades de economia mista, as autarquias e as fundações em atividade no País "de adotar qualquer prática de revista íntima de suas funcionárias por parte dos empregados ou seus prepostos".
Muito embora o projeto de lei esteja, originalmente, vocacionado à proteção da intimidade da mulher, parece possível, em princípio, na hipótese de aprovação do PL, estender a garantia ao trabalhador do sexo masculino, com fundamento no princípio da isonomia.
Não se desconhece que a adoção da regra da proporcionalidade para a solução de conflitos entre direitos fundamentais também implica, inevitavelmente, em certa discricionariedade do intérprete. A avaliação a respeito da necessidade e da adequação exigem, inquestionavelmente, a realização de uma escolha, pelo intérprete.
Todavia, a necessidade de fundamentar a escolha a partir da regra da proporcionalidade torna a atividade judicial sujeita a um controle mais qualificado, seja pelas partes processuais, seja pelo próprio Poder Judiciário. De todo modo, a contenda entre os interesses do empregador e do empregado devem levar em consideração a centralidade dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito inaugurado pela Lei Fundamental de 1988. Nunca é demais repetir a sentença lançada por Protágoras de Abdera: "o homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são, e das que não são enquanto não são.

Fonte: Artigo publicado Jusnavigandi
Autor: Cássio Bruno Castro Souza
Professor de Direito do Trabalho na Faculdade Católica de Rondônia e Analista Processual do Ministério Público da União.
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